domingo, 25 de novembro de 2007

Uma palavra sobre os erros dos reformadores

(Na ilustração acima, aparecem, da esquerda para a direita, Teodoro Beza, Calvino, John Wycliffe, Zwinglius, Bucer, Lutero, Melanchton e John Huss)
Encerrando finalmente nossa série de três artigos sobre a Reforma, segue, como prometido, nosso artigo sobre os erros dos reformadores. A demora se deveu ao fato de que estava extremamente ocupado nas revisões do meu próximo livro a ser lançado (e que breve estarei divulgando neste blog).
Bem, à guisa de introdução, é importante dizer, em primeiro lugar, que algumas das colocações aqui apresentadas não se constituem novidade para os leitores deste blog, uma vez que, durante os debates nos comentários sobre as duas primeiras postagens sobre os 490 anos da Reforma, acabamos naturalmente adiantando um pouco do assunto.
Um outro detalhe é que preferi, em vez de falar sobre todos os erros dos reformadores, apresentar um explicação geral para todos os casos. É que percebi que falar de todos eles exigiria, na verdade, mais de um artigo – creio que pelo menos umas dez postagens seriam necessárias. Além disso, qualquer caso específico pode ser sugerido e explorado pelos leitores nos comentários e, na medida do possível, iremos atender a todos. É mais prático assim.

Equívocos quanto à Reforma

Há dois tipos de equívocos muito recorrentes em pessoas que entram em contato com a história da Reforma Protestante.
O primeiro equívoco é o de querer ver apenas os acertos dos reformadores, olvidando seus erros. Quem age assim cria uma visão romântica da Reforma, e não uma visão realista. E isso é ruim por duas razões.
Inicialmente, porque olhar para o passado da Igreja é bom não apenas porque aprendemos com os acertos, mas também porque aprendemos com os erros de grandes homens de Deus. E em segundo lugar, porque a visão realista não diminui a importância da Reforma, mas, muito pelo contrário, mostra-nos quão terrível seria se a Reforma não tivesse acontecido. Sim, pois, ao analisarmos os erros dos reformadores, logo percebemos que eram frutos da influência do contexto cultural de sua época sobre eles, e a Reforma, como sabemos, propunha exatamente a transcendência dos princípios bíblicos sobre a tradição e a cultura de qualquer época. Ou seja, seus erros realçam ainda mais a importância dos primeiros passos que deram sob a graça de Deus, pois mostram que, apesar de seus esforços, como seres humanos falhos que eram (assim como nós hoje somos), os próprios reformadores não conseguiram vencer e transcender totalmente os vícios de sua cultura. Porém, abriram a porta e estabeleceram as bases precisas para o início da mudança.
Ou seja, os erros dos reformadores, que não devem ser olvidados, só valorizam mais ainda suas conquistas. À luz dos seus erros, percebemos que os passos que deram foram hercúleos. Devido ao seu contexto, foram conquistas tremendas.
A Reforma partiu da redescoberta da Bíblia. Ela pregou a volta às Escrituras, o que fez com que fossem defendidos princípios que se opunham à realidade cultural da época dos reformadores. Como conseqüência, em sua volta à Palavra, os reformadores acabaram chocando a sociedade quando encarnaram princípios bíblicos que estavam frontalmente em contraposição ao contexto político, religioso e social de seus dias. Por exemplo: a luta contra a supersticiosidade religiosa; a visão do sexo como uma bênção de Deus e a condenação apenas do sexo ilícito à luz da Bíblia (A Igreja Católica tinha uma visão de quanto mais sexo, menos santidade; e quanto menos sexo, mais santidade. A Reforma condenou e combateu essa visão); a preocupação com a educação do povo, a música e a literatura; e o resgate de mulheres da prostituição para a vida familiar (A Igreja Católica medieval “tolerava a prostituição, porque seus valores de gênero denegriam o sexo e também porque supunha que o desejo masculino fosse uma força anárquica e incontrolável que, sem um meio de descarga, macularia as mulheres respeitáveis da cidade. (...) Foi a Reforma que impeliu o fechamento dos bordéis” – As Reformas na Europa, Carter Lindberg, Sinodal, 2001).
Inúmeros outros exemplos de posicionamentos além de seu tempo, baseados na redescoberta da Bíblia, poderiam ser citados. Esses posicionamentos só foram possíveis por causa da visão de Sola Scriptura dos reformadores. Porém, como a Reforma foi apenas o começo dessa redescoberta, não poderíamos ser tão ingênuos de pensar que todos os vícios culturais da época dos reformadores foram rejeitados. Os reformadores nasceram e cresceram dentro daquela cultura medieval e tiveram seu pensamento impregnado desde cedo com a mentalidade de sua época. Por isso, em sua trajetória de vida, por terem nascido e crescido dentro daquela cultura, não conseguiram transcender todos os aspectos culturais de seu tempo, cometendo erros.
Muitos que criticam os reformadores se esquecem que se tivessem nascido e crescido no mesmo contexto cultural deles, teriam 90% de chances de fazer o mesmo ou até pior.
Os reformadores deram apenas os primeiros (e grandes) passos rumo à mudança. Por isso, seus erros, resultantes da influência do seu contexto cultural, só reforçam o quanto a Reforma foi importante. Os poucos avanços que eles deram, dentro do e apesar do seu contexto histórico, só nos devem levar a valorizar mais ainda o que fizeram pela graça de Deus. O que seria das gerações seguintes sem a Reforma?
O segundo grande equívoco recorrente é o de estereotipar os reformadores a partir de seus erros, às vezes até diminuindo a importância de seu trabalho e ministério por causa de seus erros.
Ora, a História não deve ser apenas contada, mas também interpretada, e sempre à luz do contexto a partir do qual cada história da História ocorreu. Os que a contam sem analisá-la ou sem mencionar o contexto de cada fato (citando-o apenas isoladamente) o fazem, não poucas vezes, imbuídos de determinados interesses. E isso é extremamente desonesto. É assim que se distorcem histórias. É assim que se distorce a História.
Nessa época de Pós-modernidade, a moda, como já falamos, é destruir, desconstruir, fluidificar, relativizar. Quando alguns citam os erros dos reformadores e os enfatizam sem atentar para o contexto histórico, sem analisar todas as nuances dos fatos, é porque querem que relativizemos a Reforma e, assim, deixemos de ver os postulados da Reforma como importantes.
O argumento usado geralmente é o que se segue: “Você é tão apegado aos princípios da Reforma? Você admira os reformadores? Então deixa eu te mostrar isso... Você sabia que Lutero disse isso? Você sabia que Calvino disse aquilo? Viu? Será que, depois disso, você vai admirar tantos os reformadores e a Reforma como antes? Será que gente que chegou a fazer isso e a dizer aquilo também não pode ter errado ao propor alguns princípios?”
Não é à toa que alguns cristãos, influenciados pela pós-modernidade, desprezam todos os princípios solas da Reforma, e com destaque para o Sola Scriptura (“Somente as Escrituras”), o que chamam de “bibliolatria”. Muitos deles nem consideram a Bíblia autoritativa.

Análise honesta

Falta honestidade nas análises que alguns fazem dos erros dos reformadores. Duas nuances, por exemplo, são completamente ignoradas.
Em primeiro lugar, lembremos que os reformadores não eram super-homens espirituais, assim como Abraão, Isaque, Jacó, Elias, Davi, Salomão e outros servos de Deus no passado não eram. Todos estes que citei tiveram falhas, umas maiores, outras menores, mas todos tiveram. E sabe qual é uma das coisas mais lindas na Bíblia? É que ela não esconde as falhas dos heróis da fé. Já imaginou se escondesse? Se ela o fizesse, ao lermos a história dos homens de Deus na Bíblia, diríamos: “Meu Deus, eles eram tão perfeitos! Não há como eu poder ser usado por Ti como eles foram, pois sou tão falho...”
Graças a Deus por não esconder as falhas dos heróis bíblicos! Graças a Deus por ela mostrá-los como eles realmente são! Diferentemente do que faziam os historiadores das nações da Antiguidade. Estes eram funcionários do reino e, por isso, tão tendenciosos que a maioria deles escondia todas as falhas dos reis, exaltava só as virtudes e ainda escondia relatos de derrotas em guerras contra outras nações. Esses funcionários relatavam só as vitórias. Por isso, para saber a verdade sobre determinados povos da Antiguidade, os historiadores modernos tiveram, em muitos casos, de comparar o que historiadores coetâneos de nações inimigas diziam sobre aqueles reis.
A Bíblia, porém, não mente, não camufla. Deus não dá “jeitinho” para ninguém. A Bíblia não esconde os erros dos heróis da fé. Ela mostra o ser humano como ele é, falho e extremamente necessitado e dependente da graça, da misericórdia e do perdão de Deus para ser restaurado, abençoado e se tornar uma bênção.
Enfim, ao mostrar os heróis da fé com suas falhas, a Bíblia nos ensina que Deus não faz a obra simplesmente através de nós. Ele faz Sua obra através de nós e apesar de nós, ou seja, apesar de nossas falhas. Elias era homem sujeito às mesmas paixões que nós e pôde ser usado por Deus como foi (Tg 5.17). Davi foi tremendamente falho, mas se arrependeu e pôde ser usado por Deus como foi. Nós somos falhos, mas podemos ser usados por Deus apesar de nossas fraquezas.
Então, não precisamos olhar para a Reforma para aprender que homens de Deus podem falhar. Basta lermos a Bíblia. Quem lê a Bíblia não se impressiona com a fraqueza humana, mesmo nos filhos de Deus.
Agora, em segundo lugar, devemos aprender a fazer distinção entre os que erram por fraqueza (como os reformadores) e os que erram por falta de conversão mesmo, porque são ímpios travestidos de cristãos (aqueles que demonstravam viver divorciados dos princípios do Evangelho e ainda fizeram atrocidades em cima de atrocidades em nome de Deus). No primeiro caso, não devemos ignorar os erros, mas também não devemos comprometer toda a obra de uma vida dedicada ao Senhor por causa desses erros isolados. Lutero, Calvino e outros foram grandes homens, apesar de suas terríveis falhas. Já no segundo caso, devemos rechaçar esses falsos irmãos, que dizem que estão no Evangelho, mas o Evangelho não está realmente neles. Estes podem não se envergonhar do Evangelho, mas ele se envergonha deles.
Enfim, aprendamos com os erros e acertos dos reformadores. Seus erros pontuais não devem ser esquecidos por terem sido apenas pontuais, mas também não devem ser usados desonestamente para diminuir a importância do que fizeram sob a graça e a inspiração divinas.
E uma última reflexão: assim como os erros cometidos no passado por célebres homens de Deus foram quase sempre frutos da influência do contexto histórico de suas épocas sobre eles, muitos cristãos repetem esse erro hoje quando se deixam influenciar pelo atual contexto histórico, pelos princípios da Pós-modernidade, na formação de sua mentalidade. Aprender com os erros dos reformadores e com o Sola Scriptura nos leva a não cometermos os erros desses cristãos de hoje.